quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O Pesadelo

Era mais de meia-noite, a garota Laura estava deitada em sua cama, com os olhos bem abertos ela encarava o teto, não queria dormir, tinha medo. Era horrível saber que depois que fechasse seus olhos o inferno começaria. A menina sofria muito, todas as noites ela tinha o mesmo pesadelo, um pesadelo que fazia sua vida parecer sem sentido, que a impedia de ser feliz. Essa era a realidade da pobre garota.
Como em todas as noites, Laura rezou, pedindo a Deus que desse vez ela tivesse uma boa noite de sono, que o pesadelo que lhe impedia de seguir em frente não lhe atormentasse. A garota terminou de rezar e fechou seus olhos. Dormiu e sonhou.

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Laura estava na mesa jantando, acompanhada de sua mãe Márcia e sua única irmã, Maria. Maria era 5 anos mais velha que Laura, tinha 17 anos e era uma garota muito inteligente e responsável. A mãe de Laura, Márcia, tinha 34 anos e nos últimos 5 vinha se esforçando muito para cuidar das filhas, sempre fora uma mãe boa e sentia-se uma mulher realizada com sua família, até que seu marido, Olavo, começara a beber todos os dias e assim fazer muita confusão quando chegava em casa.
Sentados na mesa os três pareciam uma filha normal, mas o clima só estava tranquilo por que ainda eram 20:30 da noite e Olavo ainda não havia chegado.
Não demorou muito para que a porta do apartamento se abrisse e o homem entrasse com uma cara de louco, totalmente possuído pela bebida. Olavo era um desses homens que bebe e não fica exatamente bêbado, mas sim agressivo, chegando ao ponto de fazer coisas sem sentido. Em muitas brigas as garotas escutavam a mãe falando que o pai agia como se estivesse possuído pelo Diabo, Laura odiava ouvir isso, morria de medo.
Olavo entrou, foi para o quarto, voltou até a cozinha e sentou-se do lado da esposa para jantar, Laura e sua irmã permaneceram quietas, já fazia muito tempo que elas passaram a ter medo do pai. O homem começou a comer, mas depois de quatro colheres de comida pegou o prato e o jogou no chão, quebrando todo o clima que havia na casa á poucos minutos atrás.
- Maria vá para o seu quarto... Você e sua irmã. Falou Márcia.
- Isso, vão mesmo, por que ninguém aguenta comer esse lixo! Disse o homem que já nem parecia Olavo, o carinhoso pai que as meninas tiveram um dia.
Laura foi abraçada pela irmã e levada para o seu quarto. As meninas encostaram a porta, sentaram-se na cama e Maria disse a irmã.
- Fique tranquila, ta tudo bem, ok? Daqui a pouco o pai dorme e tudo vai passar!
- Ta bom. Respondeu Laura com um rosto triste, a menina estava cansada daquela situação, sem contar que tinha medo de que uma tragédia um dia acontecesse.

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As coisas não melhoraram, o tempo foi passando e a discussão do casal só foi piorando. Laura começou a chorar, não aguentava ver os pais brigando, Maria abraçava a irmã cada vez mais forte. De repente as garotas ouviram Márcia gritando de dor, um grito longo carregado não só de dor, mas também de raiva e medo. Maria não sabia o que fazer, eles nunca se agrediam, brigavam quase todos os dias, mas o pai nunca havia levantado a mão para a esposa.
Na cozinha o barulho era alto, Maria agora tinha certeza uma luta estava acontecendo, mas o tumulto não durou muito tempo, depois de ouvir barulhos de cadeiras sendo derrubadas e mais um grito de Márcia o silêncio tomou conta da casa.
Laura estava confusa, ela só tinha 12 anos, mas sabia que havia algo errado, ela sentia isso.
- Fica aqui, eu vou dar uma olhada, mamãe deve ter arrumado as coisas, decerto ele foi dormir agora. Fica aqui, sentadinha. Falou Maria tentando acalmar sua irmã caçula.
Laura tentou ficar mais calma, com o olhar acompanhou sua irmã até a porta depois viu que a irmã abriu uma fresta e tentou sondar o que estava acontecendo na cozinha. A  garotinha então notou que sua irmã não se mexia, parecia estar em choque. Laura levantou da cama e foi em direção a porta, se agachou em baixo da irmã e contemplou a cena que tinha deixado Maria sem movimentos.
O pai, Olavo, estava debruçado em cima de Márcia, que não reagia, o homem serrava o pescoço da esposa com uma faca, faca que provavelmente era uma das que a mãe havia colocado na mesa juntamente com os garfos e pratos para o jantar. Olavo parecia estar concentrado no trabalho pois nem se importava com o sangue que era jorrado da garganta da esposa. Laura não aguentou a cena e acabou expressando uma reação que interviu no monstruoso ato do pai. A menina gritou, um grito agudo e baixo, quase sem voz, mas que chegou aos ouvidos de Olavo, o homem se virou em direção ao som e viu as duas filhas paradas na porta do quarto.
Laura olhou para o monstro que estava tomando conta do corpo de seu pai e ficou ainda mais assutada quando o mesmo a fitou com um olhar carregado de maldade, Olavo naquele momento era um demônio em pessoa. O homem levantou com a faca na mão, o rosto e camisa cobertos de sangue e com um sorriso no rosto avançou em direção à suas filhas.

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Com o grito de Laura, Maria saiu do transe e ao ver o pai vindo em sua direção fechou com pressa a porta do quarto, a garota trancou a porta.
Laura olhou para a irmã mais velha e sentiu-se segura, Maria era uma garota que pensava rápido. A filha mais velha de Olavo pegou seu celular e ligou para sua tia Renata, que era irmã de Márcia e ao mesmo tempo uma segunda mãe para as meninas.
- Tia, venha pra cá agora, o pai bateu na mãe... ele ta com uma faca e quer pegar eu e a Laura, a gente ta trancada no quarto, eu não sei mais o que fazer!
Disse a garota desesperada.
Quando ela desligou o celular o demônio já batia na porta, cada vez com mais força! E a porta já dava sinais de que não ia aguentar mais ser forçada.
- Laura se esconde, entra em baixo da cama, vai!
A pequena menina fez isso e Maria foi até a porta para impedir a entrada do pai. Mas o monstro era mais forte, a porta balançou e a fechadura estourou.
Debaixo da cama o pesadelo da pobre Laura continuou, ela viu mais uma cena horrível, o pai agredindo a irmã, puxando seus cabelos, a jogando no chão. O monstro então subiu em cima de Maria e se preparou para destroça-la, mas antes que a lamina descesse a atingisse Maria, a garota olhando para a irmã caçula que estava embaixo da cama, gritou:
- Fuja Laura! Fuja!
Laura então saiu debaixo da cama e se preparou para correr para porta, enquanto isso seu pai rasgava o pescoço sua querida irmã. A garotinha tentou avançar para a saída do quarto mas seu pai foi mais rápido, quando Laura tentou fugir pela porta acabou dando de frente com Olavo, o homem a encarava sorrindo.
- Ainda não é hora de ir minha pequena. Venha, eu tenho um coisa para você. Falou o homem totalmente alterado.
A menina entendeu que por ali não havia escapatória, então correu para a janela do quarto, sua única chance. Chegando lá encarou a queda. A família morava no terceiro andar.
- Não, não Laurinha... você não vai fugir do papai sua vagabunda!
Disse o demônio correndo em direção a menina, para terminar o que havia começado.
Mas agora Laura já havia subido na janela e antes de pular pedido a Deus que tudo aquilo fosse apenas um pesadelo, pois a vida não faria sentido se aquilo fosse real. Como ela viveria sabendo que o pai matou a mãe e a irmã e que estava atrás dela?
Não, não fazia sentido mesmo! A vida não seria justa se tudo aquilo fosse verdade!
Laura fechou os olhos e pulou.

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Sentiu que a mão de seu pai quase a agarrou, mas o monstro não havia conseguido, agora ela estava livre, caia de pé e enquanto seu corpo era levado até o chão, lembrou de quantas vezes tinha olhado para aquela janela e ficado com medo de cair de um lugar tão alto. Chegará até a lembrar de uma conversa que teve com a irmã.
"Se eu pular daqui eu posso sair voando Maria? – Acho não Laura, você ainda não tem assas. Lhe respondeu Maria sorrindo."
Mas agora ela tentava imaginar que a queda era pequena, que não seria preciso assas e que quando seus pés atingissem o chão, ela se afirmaria na terra, estaria a salvo.
Só que em pesadelos as coisas nunca são como nós queremos, quando Laura atingiu o solo, sentiu a maior dor de sua vida, o impacto foi tão forte que a garota berrou de dor ao sentir os ossos das pernas se espremendo, sendo despedaçados pela força da gravidade. Era como se suas pernas tivesse sido arrancadas. Gritou e nesse momento teve a certeza de que a morte havia lhe alcançado. Gritou e abriu os olhos para ver como era o céu, pois no fundo do seu coração sabia que era esse seu destino. O paraíso, junto de sua mãe e de sua irmã.

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Ao abrir os olhos Laura não estava no céu, mas sim no seu quarto, estava deitada na cama, suando muito, apavorada, o pesadelo novamente atormentara a garota. A luz do quarto se acendeu e Laura ouviu alguém dizer:
- Foi o pesadelo de novo minha filha?
- Uhum. Confirmou a menina.
- Não se preocupe, nós vamos superar isso, você vai ver, eu vou dar um jeito de resolver isso.
Mas Laura no fundo sabia que seria muito difícil alguém resolver seu problema.
- Eu posso ir dormir com você? Perguntou Laura.
- É claro minha linda. Disse sua tia Renata, enquanto se aproximava da cama da sobrinha.
A mulher se perguntava até quando a pobre Laura ia ficar revivendo aquela horrível memória. Até quando a garota iria ficar revivendo o pior momento de sua vida.
Não sabia... Mas ela iria ajudar a sobrinha, depois de tudo o que ela havia passado, depois de perder a mãe e a irmã.
Renata não deixaria Laura sozinha, ainda mais sabendo que Olavo estava preso não muito distante dali.
- Vamos Laura, quem sabe lá no quarto você durma mais um pouco minha filha.
Renata beijou a testa de Laura e ajudou a garotinha que agora tinha 14 anos a subir em sua cadeira de rodas. Levou a pequena para o seu quarto e enquanto empurrava a cadeira de Laura a tia também chorava, chorava por que seus pedidos a Deus não se realizam, já fazia mais de dois anos que Laura era atormentada por aquela horrível memória, chorava por que não entendia o motivo de a vida ser tão injusta com uma inocente criança.

A câmara de sacrifícios

Aconteceu em 1987. Numa sexta-feira de março a mulher apareceu na redação por volta das 17 horas, completamente encharcada. Lá fora despencava uma chuva tão intensa que dava para se ouvir o roncar da enxurrada subindo pelo meio-fio, digladiando-se com as rodas dos carros estacionados, mordendo postes e árvores. Cinco da tarde e tão furioso temporal dava a impressão de já ser noite.
Ela parou em frente de Mônica, a editora-chefe do caderno de cultura e, sem se sentar na cadeira oferecida, abriu uma pasta de couro e dela sacou algumas folhas.
– Poemas – disse.
– Poemas... sei... – murmurou Mônica, pegando os papéis que lhe eram estendidos. Passou um rápido olhar nos trabalhos e indicou-me, editor-adjunto.
A mulher veio em minha direção. Os cabelos, talvez louros, grudavam-se no crânio ovalado e gotejavam em suas faces de ossatura proeminente; os imensos olhos negros pareciam um fumegante lago de lava – uma incandescência que chegava a incomodar. Trajava-se com uma blusinha marrom comprimindo os seios incipientes e uma saia selvagem, longa e rodada, cheia de babados e totalmente coberta de desenhos geométricos berrantemente coloridos.
Jogou as páginas sobre a escrivaninha e com um suspiro impaciente sentou-se na cadeira. Esperei que dissesse alguma coisa – só o silêncio de seus negros e penetrantes olhos de fogo falou. Fingi que lia os poemas – enquanto isso aqueles malditos olhos perfuravam-me a carne e espírito: eu estava singularmente perturbado.
– Pode deixá-los aqui para melhor analisá-los?
– Está bem – disse – e estendeu-me uma mão úmida e gelada, levantou-se e se foi – sem um sorriso nos lábios, uma ternura agradecida nos grandes olhos negros. Sim, ternura agradecida: raramente analisávamos e publicávamos poemas, mesmo de autores conhecidos, apesar de termos uma página dedicada à literatura; poderia tê-la despachado sumariamente com sua papelada. Através da vidraça vi-a afundar-se no aguaceiro que caía lá fora. Ficou dela uma sensação de savanas abrasivas, vulcões ativos de ilhas desérticas.
Não sei quanto tempo permaneci extático, fitando a chuva. Tirou-me daquela imobilidade hipnótica o nosso diagramador: era preciso diminuir o título de um artigo. Um tanto contrariado – estava mergulhado num estado mental tão mágico! – fiz o que o rapaz pedia e, depois, tentei retomar as rédeas do fascínio. Em vão. Tudo se fora. Reintegrado à realidade, resolvi ler os poemas: falavam de civilizações pré-colombianas, não sei se Asteca, Maia ou Inca – talvez de todas elas, numa mistura monumental. Uns poemas esquisitos, alguns incompreensíveis. Até o nome da autora era estranho: Felênia. Simplesmente Felênia, sem sobrenome. Bem, o fato é que já decidira pela publicação. Restava convencer Mônica. Olhei-a, ali em sua mesa, e me surpreendi de que não estivesse concentrada no trabalho. Fitava-me, uma ruga formando-se entre as sobrancelhas. Mônica tinha 45 anos, a mesma idade que eu, e fora responsável, ainda que indiretamente, pela dissolução de meu casamento: fôramos amantes e eu, tão apaixonado, divorciei-me pensando em nova união; não deu certo – o encanto de nosso relacionamento estava justamente no adultério. Peguei três poemas da tal Felênia e fui ter com Mônica.
*
Certa madrugada eu acabava de preparar algo para comer – um ovo frito, três salsichas, uma fatia de queijo e um pedaço de pão bisnaga – quando a campainha tocou. Não atinava quem poderia estar à minha porta às três da manhã – e Felênia, depois da publicação dos poemas, muito menos. Trajando a mesma vestimenta da tarde do dilúvio, calma, segura, imperturbável, Felênia adentrou o apartamento e lançou-se no sofá. Sorriu de meu ar desconcertado, remexeu em sua grande bolsa de palha e dela retirou uma barra de chocolate. Pôs-se a comer e entre um e outro mastigar, disse:
– Que bom que você tem um gato. Gosto desse bicho.
– Gato? Que gato? – indaguei. Entre ficar furioso ou boquiaberto, tomei fôlego, dirigi-lhe um olhar piedoso e voltei a perguntar: – Em que lugar você está vendo um gato?
– No quarto. Não ouve? Ele está brincando com um pé de meia. Não ouve o barulho?
– Barulho? Barulho de uma meia sendo arrastada no assoalho?
A mulher estava me gozando, só podia.
– Exatamente – ela confirmou. Tudo era absurdo. Eu odiava gatos desde que um deles comera meus peixinhos ornamentais amazônicos, isso quando tinha seis anos de idade.
– Aliás – completou Felênia –, o bichano está brincando com a meia em cima do tapete, ao lado da cama.
Mais para ter certeza de que aquela mulher estava se divertindo às minhas custas, fui ao quarto verificar – sobre o tapete um gatinho felpudo, amarelo, preto e cinza, dava cambalhotas esfiapando a meia. Um bichano desse tamaninho. Peguei o animal e voltei à sala. Só havia uma explicação para aquilo: a mulher trouxera o felino e, não sei como, introduzira-o no quarto.
– Toma seu bicho e não brinque mais assim – disse.
– Ele não é meu – retrucou Felênia. Pegou o gatinho, acarinhou-lhe a cabeça e voltou a soltá-lo. O filhote embarafustou-se por entre os móveis, em saltitante corrida, atrás de um inseto noturno.
– Eu não gostei da apresentação que você fez dos meus poemas – disse, tirando da bolsa a página do jornal. Depois acrescentou: – Além do mais, você os publicou numa letra muito miudinha.
Eu nada disse. Ora, não tinha que dar nenhuma satisfação àquela ingrata! Felênia ficou um instante pensativa, a seguir fez um trejeito labial de desprezo.
– Mas não tem importância, minha fase poética já passou. Agora sou pintora e mês que vem talvez me dedique à escultura.
Cravando-me aqueles flamejantes olhos negros, jogou a folha do jornal no meio da sala. Então, surpreendentemente, começou a tirar a roupa. Primeiro a blusa marrom, depois a saia colorida.
– Venha, convidou-me, enquanto arqueava os quadris para facilitar a remoção da calcinha.
*
E foi assim que Felênia entrou em minha vida. Não saberia determinar-lhe a idade. O corpo era anguloso, seco e, durante o sexo, frenético e jovialmente cônscio das infinitas possibilidades do prazer – mas a pele do rosto era cansada, como que torturada anos e anos pelo abuso de maquilagem; ao redor dos imensos olhos negros via-se uma cordilheira de rugas minúsculas e os dentes tinham o esmalte amarelecido, de gente que mastiga há uma eternidade alegrias, alimentos e decepções.
Não tinha dia certo para vir ao meu apartamento, e muito menos horário. Às vezes chegava às duas da madrugada, às oito da manhã, em qualquer momento nos meus dias de folga – sem nenhum aviso prévio. Tão inconstante, acabei dando-lhe uma duplicata da chave de minha morada. Apesar do convívio, eu nada sabia dela e nem a fórceps conseguiria arrancar-lhe confissões da vida pregressa. Uma mortalha envolvia seu passado e um véu o presente. Algumas manias de Felênia me irritavam profundamente. Uma delas: ficava horas seguidas sentada no chão em posição de ioga, os olhos perdidos sabe-se lá em que labirintos esotéricos, entoando mantras – um sussurro intermitente, agourento, rouco, assustador. Após, sorria para si mesma e dizia: A teus pés deposito minha alma, ó Mestre! – e seus olhos esbugalhavam-se, a cabeça girava lentamente em ângulos absurdos, como se perseguisse a luz fascinante de alguma miragem. Quando finalmente punha-se de pé, eu já nem fazia perguntas – sabia a resposta: Felênia acabara de entrar em contato com algum sacerdote, imperador, sei lá, alguma divindade de uma das civilizações pré-colombianas.
*
Numa manhã de domingo ensolarado, Cleide, minha ex-esposa, trouxe muito a contragosto nosso garoto de 10 anos, Juninho, para passar o dia comigo. Nem se dignou a ultrapassar o limiar da porta.
– Quero-o de volta às seis da tarde – disse-me, num autoritarismo ressentido. Virou-se e foi embora. Felênia em pouco estava na sala, querendo saber de quem nos visitava. Apresentei-a ao garoto. A simpatia de Felênia foi imediata: abraçou-o com ardor, sem ligar importância ao constrangimento do menino. Beijou-lhe as faces sardentas, penteou-lhe os cabelos com os dedos.
– Puxa, como você é forte! – exclamou. – Tire a camisa querido – pediu em seguida. Como o guri permanecesse atônito, ela mesma o desvencilhou da camiseta com a estampa do Batman e apalpou-lhe o tórax saudável.
– Você está com fome? – indagou. Não esperou pela resposta: – Vou lhe fazer um desjejum digno dos deuses! – exclamou.
– Já tomei o café da manhã – murmurou o guri.
– Não tem importância. O meu é especial. Vai ver. – E sem mais aquela retornou à cozinha. Juninho sorriu-me e disse, quase a medo: – Que dona mais maluca!
*
Após o café, Felênia já tinha seduzido o garoto com as histórias mirabolantes saídas de sua mente extraordinariamente fértil. O clímax da conquista foi atingido quando nos convidou para visitarmos sua chácara, a uns trinta quilômetros da cidade.
– Possui uma chácara? – perguntei, apenas para certificar-me de que ouvia direito.
– Oh, é uma coisa pequenina – disse ela. – Mas há tantas opções de lazer! – completou, empolgada. Eu também fiquei entusiasmado, era uma fresta que se abria no casulo de seu misterioso viver.
*
Fomos à chácara no veículo utilitário de Felênia, estacionado nas proximidades do meu apartamento. E eu sequer sabia que ela soubesse guiar... quanto mais possuir um carro!
Na propriedade campestre havia um lago piscoso, recoberto parcialmente por lírios d'água – em pontos estratégicos da orla, em meio aos arbustos, viam-se esculturas em diversos tamanhos de estranhos ídolos de alguma época perdida no tempo, trabalhos feitos por Felênia, naturalmente. Além da orla, um viveiro com alguns macaquinhos. O que chamou a atenção do garoto, no entanto, foram os animais domésticos – todos em miniatura. Vacas com 90 centímetros de altura, cavalinhos que, à distância, pareciam-se com cabritos.
– Cruzamentos genéticos, explicou Felênia, você acreditaria que uma vaquinha dessas vale uma fortuna?
Sorri-lhe, um ar de dúvida passeando pelo rosto.
– Não creio que elas dêem uma caneca de leite, ou três arrobas de carne.
– Ora, seu tonto! Elas não são criadas para isso, são para encantar o espírito! Enfeite, não percebe? Observe seu filho, está completamente fascinado!
De fato, Juninho corria pelo pasto, brincando com a minúscula criação de vacas e cavalos, como se esta fosse uma porção de dóceis cachorrinhos. Logo um homem muito velho – o caseiro? – aproximou-se do guri. Trazia às costas um pequeno arreio e depois de conversarem alegremente, foram separar um dos cavalinhos – um tordilhinho com manchas marrons nas ancas, à semelhança dos apalooses. O homem encilhou-o; num salto ágil o garoto pôs-se a cavaleiro no lombo do animalzinho. Felênia tirou-me daquele feliz estado contemplativo.
– Vamos entrar – disse. – Tenho lá dentro um vinho excelente.
– Alemão? – indaguei, pensando num bom Reno.
– Chileno.
– Ah!
Claro. Só podia ser..., afinal eu estava em companhia de uma sacerdotisa pré-colombiana. Onde eu estava com a cabeça para imaginar – heresia! – que ela fosse me servir vinho alemão?
Nas paredes da sala havia cerca de onze ou doze quadros, a maioria de autoria de Felênia, um conjunto de sofás de couro, castanho, uma mesinha de centro em mármore e, sobre ela, uma escultura de uns 30 centímetros de um deus feroz, todo adornado com rubis, esmeraldas, opalas, turquesas, pedras que podiam passar por verdadeiras a um olhar menos atento. Aquele deus certamente era algum maioral de uma das dinastias perdidas no tempo. Vendo-me observar a escultura, Felênia disse sucinta:
– Um dos meus Mestres.
– Um Mestre... Sei...
Mostrou-me a casa: os quartos, a cozinha, o banheiro. Só não entramos num cômodo que, em lugar da porta, tinha grossa, indevassável cortina tecida em fios de ouro e prata. Captando minha curiosidade, Felênia avisou, peremptória:
– Aqui ninguém, a não ser eu, pode entrar, entende?
– Por quê?
– Porque aqui é câmara de sacrifícios
A coisa ficava difícil de entender. Quem poderia impedir-me de invadir o local? Repeti em palavras o meu pensamento. Ela, desafiadora:
– Pois então tente.
Resoluto, avancei. A dois metros da cortina, senti bater-me no rosto uma labareda – não seria, a bem da verdade, uma labareda: era mais um bafio cáustico com fedor de amônia, breu e ovo podre, uma emanação mefítica que impregnava as vias respiratórias, causava náuseas. Afastei-me alguns passos e tudo voltou à normalidade: o ar era fresco, a luminosidade da casa, estonteante. Como sou um sujeito racional, cheguei à conclusão de que Felênia estava acionando em meu cérebro algum mecanismo de auto-sugestão. Mas, por via das dúvidas, abandonei a ideia de invadir o cômodo.
– Vamos tomar o vinho? – sugeri.
De volta à sala, Felênia trouxe-me uma garrafa com vinho pela metade. Como não tomava álcool, providenciou para si um cálice de guaraná. Ela serviu-me o vinho num copo de estanho, que coisa mais singular, eu disse pra mim mesmo. Após virar a primeira dose, alguma coisa aconteceu: minhas pálpebras caíam sobre os olhos com a violência de meteoritos. Eu lutava bravamente para manter-me acordado, em vão. Como meu cérebro mantinha-se claro como o gelo em manhãs de geada, compreendi que estava sendo dopado.
*
Quando recobrei a consciência, estava esparramado no sofá. Sentei-me, meti a cabeça explodindo de dor – um latejar profundo em nada comparável à ressaca – entre as mãos e naquele momento ouvi um som lamentoso espalhando-se pela casa.
Pus-me de pé, cambaleante segui as ondas do lamento e dei-me com a câmara misteriosa. Um medo irracional por alguns instantes paralisou-me os membros e, patético, fiquei olhando a rica cortina do cômodo – dali não mais emanavam os miasmas de horas antes, mas pressentimentos funestos, presságios terrificantes, agouros lúgubres.
Abri a cortina e entrei. O lugar, iluminado pelo sol vespertino, tinha nas paredes, acomodadas em prateleiras, esculturas de todos os tamanhos e cinzeladas nas mais estranhas conformações. Ao centro do quarto via-se um bloco maciço de mármore, quadrado, com uns dois metros de largura por um de altura – sobre ele o meu filho, nu, distendido de costas e aparentemente dopado. Junto ao bloco, sentada em posição de ioga e de frente para o sol, estava Felênia, os olhos fechados, murmurando aquele mantra soturno, gutural, tétrico. Tinha as mãos postas em frente ao peito e, entre elas, um punhal – o cabo era feito de polidas pedras brancas e negras, formando mosaicos, e a lâmina, comprida e fina, era de sílex.
Tremendo de pânico, peguei o menino nos braços e corri para o veículo de Felênia – deixando-a naquele estado de transe a entoar sua cantilena maldita. Acomodei o garoto no banco da frente, a cabeça sobre minhas pernas, profundamente aliviado ao ouvir seus lamentos sinalizando a recuperação dos sentidos. Então, após girar a chave na ignição, observei que no peito do Juninho havia um círculo de tinta quase da tonalidade da pele demarcando o lugar exato do coração.

O TRADUTOR

O_Tradutor

Quando a proprietária do apartamento me disse, muito a contragosto, que o inquilino anterior havia morrido ali, na hora me ocorreu "O Inquilino", meu filme preferido do Polanski, apesar de não ter sido o caso. O inquilino anterior não tentara o suicídio. Foi encontrado morto depois de um mês quando o mau cheiro começou a impregnar o andar. Causa da morte: infarto fulminante. Segundo consta era solitário e anti-social. Como eu. Ela havia ocultado o fato dos pretendentes anteriores, mas não contara com a tagarelice dos vizinhos, o que resultou em sérias dores de cabeça. Desde então resolveu abrir o jogo logo de cara, rezando intimamente para encontrar um inquilino não supersticioso. Demorou, mas apareci.
Sou tradutor. Porque gosto e, principalmente, porque preciso. Nunca soube lidar com as pessoas e, para falar a verdade, nunca gostei. Durante a infância achavam que eu fosse autista. Houve uma época em que eu também achei. Parece desnecessário dizer como foram a adolescência e a vida universitária de alguém assim. Minha primeira opção de vida profissional foi processamento de dados. Era o início dos anos noventa e o tempo todo se falava na era da informática. Parecia interessante e eu não tinha nada contra os computadores. Mas aí descobri que também não sabia(e nem gostava) de lidar com máquinas. Mas gostava de livros. Adorava, desde criança. Então, rumei para a faculdade de Letras. Posso dizer que me dei bem. Nunca ganhei uma fábula de dinheiro mas, para alguém com minha personalidade e meu estilo de vida, até que tem dado para o gasto. Atualmente trabalho para três editoras.
Quando minha mãe morreu decidi vender o apartamento que ela comprou com tanto sacrifício e alugar outro bem longe dali. Quando chegamos àquele apartamento parecia o início de uma nova vida, mas um ano depois eu já queria me mudar. Resolvi alugar porque não teria para quem deixar após minha morte. Queria algo pequeno(nunca gostei de grandes ambientes). Então, encontrei este apartamento de cinqüenta metros quadrados, dois dormitórios e um passado sombrio. A proprietária tentou relatar o ocorrido apenas como uma fatalidade, algo natural que pode acontecer em qualquer lugar e, ainda mais, com um senhor com mais de cinqüenta anos. Mas era perceptível o temor de que o histórico de seu tão bem cuidado imóvel afastasse mais um interessado. Quase me beijou quando disse que alugaria.
Adoro cinema. Em especial o cinema de terror. Gosto de todos os gêneros, mas tenho uma ligação especial com o cinema do medo. As melhores lembranças que tenho de minha infância e minha adolescência são de estar em frente à tv à noite, geralmente sozinho, morrendo de medo, assistindo àqueles maravilhosos filmes de terror produzidos nos anos 60 e 70. "O Túmulo do Vampiro", "A Invasão das Rãs", "A Volta do Lobisomem", "O Monstro sem Alma", "A Casa Mal Assombrada", "O Expresso do Horror", "A Casa dos Sete Mortos", "O Fogo Diabólico", "A Casa da Noite Eterna", entre outras preciosidades. É doloroso pensar que a tv aberta, um dia, já foi de qualidade. Lembro, com intensa saudade, de estar encolhido no sofá, com a luz acesa, sobressaltando com qualquer ruído e de, após o filme, todo encolhido na cama, cabeça coberta, luz acesa, rezar para cair no sono ou para que amanhecesse logo. Conforme fui crescendo, este medo foi sendo substituído pelo medo de coisas reais, concretas, em parte devido ao meu jeito de ser. Nunca mais havia sentido medo de ruídos, sombras, escuro, de estar sozinho. Até ir morar naquele apartamento.
Começou com meu rádio gravador. Desde o final dos anos 80 tenho o hábito de ouvir rádio de madrugada. Geralmente da meia-noite às três da manhã. Flashbacks. Musicalmente parei nos anos 80. Tenho várias fitas cassetes com músicas que vão até aquele período. Certa madrugada ele simplesmente parou de funcionar. Achei que fosse falta de energia. Não era. Não estranhei, uma vez que ele era bem antigo. Levei para consertar. Lá, na frente do técnico, funcionou perfeitamente bem. Voltamos para casa. Não funcionava. Levei novamente ao técnico. Funcionou divinamente. Pedi a ele para dar uma olhada.
Em seguida foi o vídeo-cassete. Caramba, logo o vídeo. O aparelho de dvd eu nem me importaria. Ele recusou-se a reproduzir uma de minhas fitas e também a devolvê-la. Àquela altura ninguém mais consertava vídeos-cassetes. Tive de sacrificá-lo para recuperar a fita. Ele tinha doze anos. Meu último vídeo-cassete.
Aí então, foi a televisão. Eu havia encontrado um dvd duplo de "Era Uma Vez no Oeste". A televisão não quis nem saber. Recusou-se a funcionar. Ela também era bem antiga e achei que talvez não valesse a pena consertá-la. Deixei-a perto da lixeira do condomínio. Um funcionário me perguntou se podia levá-la. Eu disse que não estava funcionando, que ela já tinha uma certa idade, mas ele a quis mesmo assim. Dias depois eu voltava com meu rádio gravador(O técnico não havia encontrado defeito algum) e encontrei o funcionário que disse que a televisão estava ótima, que não houve necessidade de conserto. O rádio gravador permaneceu em seu silêncio. Seria algum problema de fiação? Informei o caso à proprietária, que enviou um eletricista. Não havia problemas com a fiação. Como eu estava com um certo acúmulo de trabalho(bons tempos) decidi dedicar-me totalmente a ele e deixar para resolver minha carência nostálgica depois.
Como já disse, o apartamento possuía dois dormitórios. Transformei um deles em meu ambiente de trabalho. Possuo dois pen drives(que saudade dos disquetes e saudade maior ainda de quando não havia nada disso). Em um, guardo cópias de meus trabalhos, em outro, lembranças(fotos, pôsteres, artigos que encontro na internet). Os dois ficavam em um compartimento da estante no quarto de trabalho. Certo dia, chegando do supermercado, indo em direção à cozinha, olhei de relance para o meu quarto e algo no chão, no meio do dormitório, chamou a minha atenção. Eram os pen drives, um sobre o outro. Fiquei em pé no meio do quarto segurando os dois e tentando imaginar como eles foram parar ali. Eu havia feito uma faxina no apartamento três dias antes, lembrava-me de tirar o pó da estante, de pegar os pen drives. Talvez os tivesse deixado cair sem perceber e...não, não fazia sentido. Um em cima do outro? Como vieram parar no meu quarto? E como só fui percebê-los ali três dias depois? Nem eu era tão distraído assim. Levei-os até a estante, torcendo para que os meu pen drives estivessem ali e que aqueles em minha mão fossem outros que eu tivesse esquecido que possuía(muito forçado, eu sei). Como eu temia, só havia dois pen drives naquele apartamento. Ao longo de minha existência houve momentos em que duvidei de minha sanidade(deve ser comum em pessoas como eu), mas aquele era o primeiro em que não havia a mais remota possibilidade de uma explicação racional.
Então, vieram as sombras. Pareciam ratos correndo pelo apartamento. Tenho pavor de ratos. Sempre tive, desde a infância. No dia em que me mudei para o meu(da minha mãe, na verdade) primeiro apartamento deixei este medo para trás. Há alguns anos assisti a uma reportagem sobre ratos de telhado. Monstros enormes. Não me assustei muito, já que eles eram comuns em casas e sobrados. Eu então morava no vigésimo andar. A rapidez com que as sombras se moviam fizeram-me cogitar a hipótese de ataques a edifícios também. Eu os localizava com o canto do olho e quando, assustado, voltava-me para sua direção, disparavam em fuga. Em minhas traumáticas experiências com ratos eles nunca fugiram de mim. A muito custo, abordei o zelador e perguntei se havia problemas com ratos no condomínio. Não havia. Até que uma noite avistei uma delas no teto da cozinha(?). Era uma sombra, e correu assim que olhei para ela. No entanto deu para ver que era uma sombra. Naquele instante lembrei-me(muito oportunamente) que há anos eu não voltava ao oculista.
Os barulhos noturnos. Sempre no meu quarto. Primeiro parecia que alguma coisa(um rato?) andava pelo quarto. Não foram poucas as vezes em que me levantei assustado, acendi as luzes e olhei pelos quatro cantos do cômodo procurando(e temendo encontrar) algo que justificasse aquilo. Depois veio o leve ruído de algo se rachando. Eu levantava e olhava todo o piso. Nada. Acontecia apenas no escuro. Então, passei a trabalhar até bem tarde e só parava quando estava caindo(literalmente) de sono. Passei também a dormir no sofá da sala. Estava ficando muito difícil morar naquele apartamento.
Enquanto morava com minha mãe eu passava boa parte do tempo trancado no quarto, fosse trabalhando ou qualquer outra coisa. Mesmo morando sozinho preservei o hábito. Certo dia eu estava trabalhando quando ouvi nitidamente a porta da sala se abrindo e alguém entrando no apartamento. Gelei. Era um roubo. Ouvi claramente esta pessoa andando pela sala. Passei os olhos pelo cômodo procurando algo que pudesse servir como arma e constatei que só poderia ameaçá-la com dicionários. Tomei coragem(o fato de ainda ser dia contribuiu muito para isso) e saí do quarto. Ninguém na sala e nem em outro cômodo. A porta da sala estava fechada. Estava trancada e a chave na mesinha de centro.
As lembranças. Não consigo lembrar com exatidão quando começaram. De repente, os momentos mais dolorosos da minha vida(erros graves, humilhações, pessoas que eu machuquei e não mereciam, momentos de covardia) começaram a dominar minha mente. Começavam quando eu acordava(às vezes antes, durante os sonhos) e me acompanhavam o dia todo. Eu não conseguia pensar em mais nada, não conseguia trabalhar. Só melhorava quando eu saía. Passei a freqüentar lugares movimentados e a passar horas lá. Eu, que passara a vida fugindo das pessoas, então procurava o seu convívio. Ficava horas fora. Tinha medo de voltar para o apartamento. Cheguei a tentar trabalhar em la house. Tentei me adaptar aos pensamentos(em especial às minhas culpas) e seguir adiante.
Aí então, o golpe de misericórdia. Ela. Passar grande parte de minha existência fugindo do convívio social não impediu que eu me apaixonasse. Amei, sim. Ainda amo. É claro que não houve nada, apenas na minha cabeça. Não por culpa dela, quero deixar bem claro. Ela nunca soube. Apesar de sua lembrança me machucar há anos, ela também é a mais doce e terna que possuo. Mas não foi este lado meigo que passou a me acompanhar todas as horas do dia. A saudade que há anos eu sentia fora ampliada de forma devastadora. Chegava a doer. Junto à saudade vinham lembretes de porque não havia dado certo e porque jamais poderia ser. Passei a chorar o tempo todo. Mesmo fora do apartamento eu sentia uma pontada de dor. Aí, ficar perto das pessoas voltava a me fazer sofrer. Ver casais, pessoas felizes, aumentava ainda mais meu sofrimento e então eu voltava para o apartamento, onde eu podia pelo menos chorar à vontade. Certa noite, encolhido na cama(só horas mais tarde percebi que havia voltado para o quarto), enrolado no cobertor, eu chorava a cântaros, como se eu nunca tivesse chorado em toda a minha vida. Chorava de saudade, por ser daquele jeito, por ter nascido. Estava tão absorto em meu sofrimento que custei a perceber que alguém segurava minha mão e levei um pouco mais de tempo para me lembrar de que aquilo era impossível. Petrifiquei. Eu sentia aquela mão forte segurando a minha direita. Não tive coragem de abrir os olhos. Levantei de um salto e fui tateando até a sala. Abri os olhos rapidamente para pegar a chave na mesinha, abri a porta e saí desesperado. Não parei para chamar o elevador e disparei pelas escadas. Saí correndo do edifício até uma pracinha que ficava em frente. Olhei para as janelas dos quartos do apartamento no vigésimo andar. Nada. O que realmente eu esperava ver, não sei. Sentei em um banco. Estava frio e eu vestia um shorts e uma camiseta. Não havia mais ninguém ali. Aquela região estava ficando conhecida por sua alta incidência de assaltos e estupros. Passei a noite ali, sem sair do lugar. Sem tirar os olhos das janelas do apartamento.
Passei o dia seguinte à procura de um novo lugar para morar. Encontrei uma kitchnette a um preço abusivo, mas eu não tinha escolha. Não passaria nem mais uma noite naquele apartamento. A rescisão de contrato de aluguel foi uma facada e tanto. Apesar dos atrasos em meus trabalhos, não cheguei a ter nenhum grande problema, uma vez que eu não traduzia Best Sellers. Meu rádio gravador voltou a funcionar e comprei uma tv LCD, já que as tvs com as quais eu sempre convivi praticamente não existem mais. Mas, a solidão hoje já não é mais a mesma. Não me sinto mais tão a vontade e seguro como durante toda a minha vida. À noite a luz fica acesa o tempo todo, mesmo quando assisto à televisão. Não vejo mais filmes de terror. Qualquer ruído me deixa em estado de alerta. Voltei a dormir com a luz acesa, todo encolhido, com a cabeça coberta, rezando para cair no sono ou para que amanheça logo.

O fantasminha abusado

No bairro mais elegante de nossa cidade existe uma residência antiga e sombria na sua pintura cor de bronze e na cobertura de telhas portuguesas esverdeadas de musgo. É cercada por um muro alto e sólido revestido por heras com um portão de ferro fundido com as pontas das hastes em forma de flecha – por esse portão os passantes matam a vontade de bisbilhotar os recônditos da propriedade. É possível observar as sebes malcuidadas, as roseiras velhas de galhos rugosos e as árvores ornamentais de procedência europeia. Pairando num pedestal de mármore no centro de um laguinho, um cupido barrigudinho com arco retesado nas mãos urina o dia inteiro nas águas límpidas onde pardais, rolinhas, pintassilgos e corruíras tomam banho. Há, ainda, uns bancos de granito sob os arbustos que são uma tentação para os jovens casais de namorados que passam pela calçada.
A residência é ocupada pelo Dr. Kaváfis e por sua esposa, a Sra. Aagje – um casal grego de meia-idade naturalizado brasileiro. O marido é um homem muito alto, magérrimo, possui anéis de esmeralda e rubi nos dedos, enverga ternos bem cortados e dirige uma Mercedes cinza-prateada de modelo obsoleto – diz-se que é empresário no ramo de joalheria. A mulher também é alta e magra e usa sempre um conjunto cor de vinho. Há cerca de um ano meu irmão Perseu, naquela época com dezenove anos (um ano mais velho que eu), começou a trabalhar para o casal como vigilante noturno. Era o seu primeiro emprego e estava empolgado com suas obrigações – os patrões pagavam um salário inacreditável e, além disso, tinha permissão para usar o carrão aos domingos, durante o dia.
Perseu em pouco tempo foi ficando rico. Usava roupas de grife, tênis importado, sua carteira estava sempre recheada de notas graúdas. Na mesa de nossa família a carne, um luxo dominical, tornou-se um acontecimento rotineiro; fez reforma nas portas e janelas do barraco; construiu um quarto para cada um dos cinco irmãos, já que, segundo ele, só os animais dormiam amontoados como nós. Ergueu uma lavanderia nos fundos, com máquina de lavar roupa automática, um sonho antigo de nossa mãe; instalou antena parabólica para que nossos pais vissem o futebol e a novela com mais nitidez de imagem; fez meu pai vender a carroça e o burro e para o trabalho de transportes de miudezas comprou uma caminhonete Ford, usada, é bem verdade, mas em bom estado de conservação – ensinou meu pai a guiar o veículo. Eu ganhei uma bicicleta de dez marchas e nossa irmãzinha caçula foi presenteada com bonecas Barbies originais, não aquelas imitações de camelôs que se desfaziam com menos de um mês de folganças. Meus outros irmãos menores ganharam bolas de futebol e uniformes autênticos das equipes do Corinthians e São Paulo para que fossem os reis das peladas na várzea e nunca mais ficassem no banco de reservas.
Perseu comprou para si um Gol com aquele perfume tão característico dos veículos recém-saídos da fábrica, num domingo encheu o porta-malas com cestas contendo frango assado, Coca Cola, pamonha e outros quitutes, embarcou a família e fomos para a beira do rio onde passamos um dia maravilhoso, fingindo que pescávamos. Em certo período da tarde, quando todos se refestelavam com a pança cheia, aproveitei que estávamos a sós, debaixo de um pé de guabiroba à margem do rio, e fiz a pergunta que me incomodava:
– Por que seus patrões pagam você tão bem?
– Se eu contasse você não entenderia.
– Tente.
– Vou contar, mas se você espalhar por aí, vão te chamar de mentiroso.
– Não abro a boca pra ninguém.
– Nem pra mãe e nem pro pai?
– Principalmente pra eles.
Perseu coçou a cabeça, um cacoete que se manifestava quando estava tentando achar as palavras certas. Coçava bem em cima da cicatriz provocada por um tiro – quando menor de idade tinha se envolvido com quadrilhas do tráfico de entorpecentes, atuando como mula. Andou passando a perna nos caras e se deu mal. Primeiro quebraram seus dois braços com uma barra de ferro, quando ele tirou o gesso e voltou à lida, roubou os chefões de novo, deram-lhe uma surra de moer os ossos e o jogaram desacordado no rio que abastece nossa cidade, um rio grande, volumoso, com correntezas e redemoinhos capazes de destroçar ônibus, pois não é que meu irmão sobreviveu? Ficou no hospital por duas semanas, uma delas em estado de coma, recuperou-se admiravelmente, recebeu alta – continuou metido no tráfico e passando a perna em gente perigosa. Então meteram uma bala em seus miolos. O filho da mãe se safou mais uma vez e parou em definitivo com o negócio de drogas, mas ficou assim meio destrambelhado.
– Eu cuido dum fantasminha – disse ele, finalmente.
– Como assim... fantasminha?
Perseu balançou a cabeça, desanimado.
– Viu? Eu sabia que você não ia acreditar.
– Se você explicar direitinho, talvez eu acredite.
– É o seguinte. Os meus patrões tinham um filho que morreu com sete anos de idade num acidente de carro. Acontece que o menino não foi pro outro lado, entende? Fica na casa e gosta de brincar comigo. Eu passo a noite brincando com o fantasminha. Meus patrões são gratos pela minha dedicação. Aí eles me recompensam com aquilo que acham que é valioso, ou seja, com muita grana. Entendeu?
– Acho que entendi – eu disse. Mas não acreditei. Como acreditar numa coisa tão incrível, ainda mais partindo de meu irmão, um doidão de pedra?
*
Na manhã seguinte após a excursão ao rio, meu irmão caiu doente. Primeiro começou a vomitar um líquido incolor, minha mãe deu a ele sal de frutas, remédios caseiros e nada de melhorar. Como minha mãe tinha que pegar no batente – era dia de faxina no consultório de um dentista – fui encarregado de cuidar do mano ao invés de ir trabalhar com meu pai, meu velho teve que se virar sozinho com a mudança de um vizinho com tantos cacarecos que era previsto pelo menos três viagens com a camionete carregada até as bordas.
*
Lá pelo meio-dia o vômito de Perseu era cinza-escuro, fétido, misturado a umas substâncias sólidas parecidas com lascas de madeira – e o mais impressionante é que ele foi acometido de uma fraqueza tão grande que teve de ser colocado na cama. Uma coisa incrível, haja vista que meu irmão é forte como um campeão mundial de boxe. Fiquei tão preocupado que fui ao orelhão e liguei para a emergência do Hospital Universitário, a ambulância veio, antes de ser carregado de maca para o veículo Perseu pediu que eu fosse à casa de seus patrões e contasse o sucedido. E me pediu:
– Olha, só eu e a Dona Aagje conseguimos ver e falar com a criança fantasma. Mas você é meu irmão, somos a cara escarrada um do outro, assim o guri pode nos confundir. Então eu te aviso, se você vir o fantasminha, não coma nada que ele te oferecer, tá bom? Ele é um fantasminha legal, mas tem um humor negro do Cão.
– Como assim?
– Aquilo que parece torta não é torta, aquilo que parece sorvete não é sorvete. Tem gosto de torta, tem gosto de sorvete, mas não é torta nem é sorvete.
– É o quê?
– Porra, eu sei lá! Só sei que desgraça o estômago da gente.
*
Fui com meu irmão de ambulância para o HU, depois que ele foi instalado num quarto com mais três enfermos, deixei o hospital e tratei de ir dar o recado para os patrões. Cheguei à residência às três da tarde, apertei a campainha no portão e a própria Sra. Aagje veio me atender. Identifiquei-me desnecessariamente, contei do incidente com meu irmão, ela ficou seriamente preocupada, pediu mais informações, eu as dei, ela disse que providenciaria para que Perseu fosse transferido da enfermaria para um leito particular e perguntou se eu queria entrar e tomar um refrigerante. Eu estava me mordendo de curiosidade a respeito daquela casa, assim aceitei o convite. Ela apertou o controle remoto e o portão abriu-se. Segui ao lado da mulher, ela tagarelando, querendo saber exatamente como era o vômito que Perseu expelia, se tinha cheiro.
– É um cheiro muito ruim – eu disse.
– Ruim como?
– É cheiro parecido com coisa podre. Igual à carne de um bicho que morreu há muitos dias.
Ela nada disse. Entramos numa sala grande, repleta de móveis solenes, feitos com madeira maciça e envernizados de marrom-escuro.
– Espere um minuto aqui – ela disse. E me indicou uma poltrona grande, de veludo bordô, sentei-me e fiquei olhando-a deslizar sem ruídos por cima de tapetes imensos, fofos, tão felpudos que os pés da gente afundavam bem uns quatro centímetros. A mulher desapareceu por um corredor escuro. Então vi que, parcialmente escondido detrás do piano de cauda, um garotinho de uns sete anos me fitava com um sorriso travesso. Após alguns instantes, ele saiu do esconderijo e caminhou para o lugar onde eu me sentava. Estava usando uma camisa branca com babados, gravata borboleta, um terninho preto e sapatos sociais brilhando de graxa. Parecia um noivo em miniatura. Os cabelos negros assentavam na cabeça naturalmente a destacar o rosto muito branco, branco mesmo, feito giz. Ele me estendeu a mão e, como que por encanto, surgiu nela um pratinho de papelão contendo um pedaço de bolo de chocolate. Com gestos instigou-me a pegar a guloseima. Olhei o bolo, depois os olhos do menino, santo Deus, que olhos mais magnéticos, mais sardônicos, mais peraltas! Fui tomado pelo terror.
– Não quero merda nenhuma de bolo! – gritei. E saí da casa a passos largos, corri como louco pelo jardim. O portão estava trancado. Não sei como, mas escalei o muro alto, saltei, sentei-me no meio-fio e fiquei lá por mais de quinze minutos, esperando a tremedeira passar. Em seguida fui ao ponto de ônibus, peguei o coletivo e voltei para o hospital.
*
Perseu fora transferido para um leito particular, após telefonema da Sra. Aagje à administração hospitalar. Meu irmão estava muito mal e respirava através de aparelhos. Eu me sentia exausto, tirei os sapatos e deitei-me na cama de acompanhante, estava pegando no sono quando vi que uma turma de estudantes de medicina adentrava o recinto, capitaneada por um professor da universidade. Temendo que as conversações se restringissem aos jargões médicos para me manter ignorante do quadro geral do paciente, fechei bem os olhos fingindo que dormia como pedra. Eles confabularam em surdina, os rapazes e moças fazendo anotações nos grandes cadernos. A linguagem era acessível, por isso fiquei sabendo que análises laboratoriais tinham revelado que o vômito de Perseu continha madeira podre e substâncias de carne em decomposição.
– O organismo do paciente está infestado de micro-organismos letais – explicou o professor e começou a falar uns nomes científicos.
– O senhor está dizendo que ele comeu um cadáver e pedaços do caixão? – perguntou um aluno que devia se achar muito espirituoso. Podia não ser espirituoso, mas certamente era o palhaço da turma, porque provocou risinhos excitados. Aquilo me magoou, deu uma vontade de chorar imensa. E chorei. Chorei forte perdido na minha angústia, naufragado na minha desolação. Chorei desbragadamente, chorei vergonhosamente, chorei como aqueles bezerros desmamados à força que incomodam todo mundo num raio de muitos quilômetros. Nesse estado de espírito a gente não dimensiona o quanto somos escandalosos. Só sei que um aluno foi buscar uma enfermeira, ela veio, aplicou uma injeção em meu braço e pimba! – fui a nocaute.
*
Às nove da noite minha mãe veio ao quarto trazendo com ela a Dona Maria, a curandeira da nossa vila. Dona Maria é uma espécie de faz tudo: realiza partos difíceis, dissolve namoros perigosos, amansa marido metido a besta, cura bicheira de animais, faz poções mágicas para apaixonados e poções de ervas para criança lombriguenta, lê cartas de tarô, cartas ciganas, runas e búzios. É especialista em maleita, mordida de cobra e estancamento de hemorragias em abortos malfeitos. Seus maiores ganhos, no entanto, vêm da venda de patuás de proteção contra tiros e facadas – traficantes e ladrõezinhos rastaqueras são os seus maiores clientes.  Minha mãe me cumprimentou com um aceno e postou-se ao lado do meu irmão que, agora, não estava mais ligado a máquinas, no entanto respirava como se estertorasse. Dona Maria abriu sua bolsa de palha e sacou do interior uma garrafinha do tamanho de um palmo, destampou-a e arreganhando a boca de Perseu despejou todo o conteúdo, um líquido espesso como groselha de supermercado, só que era verde – em seguida travou-lhe a boca impedindo a regurgitação. Devia ser uma poção ruim pra cacete, só pela cara de repugnância do mano. Depois as duas vieram falar comigo, mas por pouco tempo, eu estava muito grogue por causa da injeção de calmante. Pedi que fossem embora, eu queria dormir. Elas partiram. Dois minutos após eu ferrava no sono.
Acordei de manhã com o alvoroço dentro do quarto. Médicos, enfermeiras e até um pessoal da administração rodeavam a cama de Perseu que, sentado com as costas apoiadas à cabeceira, contava lorotas a respeito de sua formidável resistência física, repassando todas as vezes que driblou a morte quando fora – injustamente, covardemente, implacavelmente – caçado por traficantes durante toda a adolescência.
*
Perseu ficou mais um dia internado para a realização de novos exames que só comprovaram a sua total recuperação. Recebeu alta e voltou para o trabalho de pajem do pequeno espectro – permanece até hoje no emprego e o seu salário é aumentado todos os meses. Acho que dificilmente irá mudar de profissão, principalmente porque nesta última semana outros fatores vieram somar-se ao seu entusiasmo. Ontem, após o almoço, fomos fumar um cigarro na varanda então lhe perguntei qual a causa de tanta alegria, tanta empolgação, tanto brilho no olhar. Perseu me explicou: A sobrinha de Dona Aagje está hospedada na residência, passando umas férias. Chama-se Andrômeda e, Perseu não soube explicar bem, mas parece que ela é autoridade em fenômenos paranormais. Meu irmão disse ainda que Andrômeda, além de muito inteligente, é bonita como uma gota de orvalho. E que também vê o fantasminha.